Se há algo que aprendemos ao longo dos últimos anos acompanhando organizações e projetos de impacto é que nem tudo que importa pode ser medido com números, e nem tudo que pode ser contado realmente conta.
Essa provocação se tornou central para repensar como avaliamos o impacto gerado por ações socioambientais.
A avaliação de impacto, em sua essência, é uma ferramenta para compreender se, como e por que nossas ações geram mudanças relevantes.
Mas quando nos guiamos exclusivamente por métricas numéricas ou lógicas lineares, corremos o risco de perder de vista a complexidade viva dos sistemas em que atuamos e de reduzir as pessoas a estatísticas.
Por isso, acreditamos que medir impacto não se resume em uma questão técnica: é também uma escolha política, ética e, sobretudo, relacional.
Por que precisamos falar de avaliação de impacto?
Avaliar o impacto de um projeto não é sobre provar valor para fora, embora isso também seja importante, mas é, acima de tudo, um processo de aprendizado e responsabilidade.
Aprendizado que nos permite observar com honestidade o que está funcionando (ou não), quais caminhos estamos trilhando, o que precisa ser ajustado ou aprofundado.
Responsabilidade porque nos compromete com quem foi impactado, com os recursos mobilizados e com o ecossistema em que atuamos.
Em um mundo onde problemas são complexos, interconectados e não linearmente causais, pensar impacto exige mais do que medir outputs.
Não basta saber quantas pessoas participaram de uma formação, por exemplo, é preciso compreender se houve transformação, se algo foi mobilizado, se relações foram alteradas, se novas possibilidades emergiram.
Como lembra Daniel Christian Wahl, trabalhar em sistemas vivos requer abandonar a ilusão de controle para abrir espaço ao fluxo, à adaptabilidade e ao cuidado com os efeitos que se propagam em múltiplas direções.
Isso significa que avaliar é escutar o sistema.
E se avaliar também fosse regenerar?
Ao trazer a perspectiva regenerativa para a avaliação, o que está em jogo é uma mudança de paradigma:
Medir para comprovar ➔ Medir para compreender e nutrir.
A abordagem regenerativa nos convida a olhar para projetos e organizações como organismos vivos, inseridos em contextos específicos, com relações complexas e potenciais únicos de transformação.
Aqui, o papel da avaliação se expande.
Ela deixa de ser um exercício final, quase como um check-out do projeto, e se torna uma ferramenta contínua de aprendizagem, de escuta e de orientação.
Uma avaliação regenerativa, portanto, não se limita a indicadores pré-definidos, ela se transforma com o projeto, com seus participantes, com o território e com o tempo. É viva, como tudo aquilo que busca regenerar.
Carol Sanford propõe que organizações podem operar em diferentes níveis de profundidade: operacional, estratégico, sistêmico e evolutivo.
Esses níveis também nos ajudam a refletir sobre o que estamos medindo.
Será que estamos avaliando apenas a eficiência operacional do projeto?
Ou estamos conseguindo captar também os efeitos que ele gera na cultura, nos padrões relacionais, na capacidade do sistema de se autotransformar?
Para nós, é preciso ir além da superfície e avaliar também o que não é imediatamente visível, mas é essencial.
Entre números e narrativas: caminhos possíveis
Na We.Flow, buscamos integrar os dois mundos: o rigor das metodologias avaliativas com a sensibilidade de quem reconhece que o impacto real muitas vezes se revela nos detalhes, nos vínculos e nas histórias.
Para isso, combinamos instrumentos quantitativos com métodos qualitativos que nos ajudam a mergulhar nas experiências vividas por quem participa dos projetos.
Falamos aqui de escuta ativa e empática.
Escutar com atenção significa ir além do que é dito, perceber o contexto, os silêncios, os sentidos atribuídos.
Significa compreender que dados não são neutros, e que muitas vezes o que parece um “fracasso” numérico pode conter uma rica história de transformação invisível aos olhos de uma planilha.
É por isso que incorporamos à nossa prática o conceito de “warm data”, desenvolvido por Nora Bateson.
Diferente dos dados “frios”, que isolam variáveis e simplificam relações, os dados quentes capturam o entre: as conexões, os contextos, os múltiplos sentidos que emergem de uma situação real.
Coletar dados quentes é criar espaços seguros para conversas significativas, é abrir mão da neutralidade para acolher a complexidade.
Em nossos processos avaliativos, isso se traduz em círculos de diálogo, registros narrativos, oficinas reflexivas e instrumentos que respeitam o tempo e o modo de cada pessoa contar sua própria história.
Coerência entre propósito e avaliação
Se dizemos que trabalhamos por regeneração, não podemos aplicar uma lógica avaliativa que contradiz esse valor.
Isso significa revisar nossas perguntas, nossos instrumentos, nossos formatos de devolutiva.
Significa também incluir as vozes de quem raramente é ouvido em processos de avaliação: pessoas diretamente impactadas, lideranças comunitárias, organizações parceiras.
A prática regenerativa exige uma escuta profunda das realidades locais, e por isso adaptamos ferramentas como o Marco Lógico para que sejam compreensíveis, úteis e apropriadas aos contextos com os quais trabalhamos.
O mesmo acontece com a Teoria da Mudança: para nós, ela não é um infográfico bonito, mas um processo coletivo de alinhamento, cocriação e visão de futuro, onde cada ator envolvido contribui com seu olhar sobre as causas profundas, as condições necessárias e as possibilidades de transformação.
Aqui, as ideias de Wahl novamente ecoam: não se trata de desenhar soluções para as pessoas, mas com elas, desde uma escuta profunda dos padrões vivos e relacionais de cada sistema.
Ao olhar para a teoria da mudança como um processo evolutivo – e não como um mapa fixo – deixamos espaço para a adaptabilidade, para o não-saber e para a emergência de caminhos mais potentes do que os previstos.
Prestação de contas com rigor e sensibilidade
Uma dúvida comum que ouvimos é: “como apresentar dados qualitativos para investidores e parceiros?”.
Nossa resposta é simples: com a mesma seriedade e clareza com que apresentamos gráficos.
Histórias, depoimentos, aprendizagens e até os desafios enfrentados têm valor comunicativo e estratégico.
Quando bem contextualizados, eles não diminuem a credibilidade de um projeto, ao contrário, aumentam sua profundidade e autenticidade.
Narrativas são potentes porque conectam, inspiram e traduzem o que os números não conseguem.
Quando bem utilizadas, elas não substituem os dados, mas os completam.
Em nossos relatórios, buscamos sempre esse equilíbrio: indicadores objetivos que mostram resultados, e relatos que dão corpo e alma a esses números.
Assim, a prestação de contas se torna mais do que um exercício de transparência, ela vira um convite à corresponsabilidade.
Além disso, incluir dados qualitativos de forma estruturada – como fazemos com as técnicas inspiradas nos Warm Data Labs – permite que parceiros vejam o que realmente está se transformando, mesmo quando os resultados ainda não são mensuráveis em larga escala.
Isso vale especialmente para projetos voltados ao fortalecimento de comunidades, mudanças culturais ou processos educativos de longo prazo.
O impacto está lá, mas precisa ser lido com outra lente.
Avaliação como parte da mudança, não como juízo final
A perspectiva regenerativa nos lembra que avaliar não é um fim, é parte do caminho.
Quando feita com cuidado, a avaliação se torna uma forma de nutrir a própria transformação que desejamos promover.
Ela retroalimenta o processo, amplia a consciência da equipe e fortalece a relação com os territórios.
Mais do que medir se o projeto “deu certo”, perguntamos: como ele foi sentido? O que se transformou em quem participou? Que novas sementes foram plantadas?
Essas perguntas nos guiam em busca de um impacto que não seja apenas declaratório, mas experienciado e reconhecido por quem esteve no centro da ação.
Esse é um movimento também evolutivo, como propõe Carol Sanford.
Projetos realmente transformadores não apenas atingem metas, mas fortalecem a capacidade de evolução dos sistemas em que atuam.
Avaliar com essa lente significa olhar não só para os resultados imediatos, mas para os efeitos de longo prazo, inclusive os que ainda estão germinando.
É reconhecer que impacto também é potencial, e que parte do nosso papel é criar as condições para que ele floresça.
O que usamos para medir com mais sentido
Para garantir que nossas avaliações honrem esses princípios, adotamos algumas práticas fundamentais:
- Diagnósticos imersivos, que combinam análise documental, conversas abertas e escuta profunda dos diferentes atores envolvidos.
- Teorias da mudança cocriadas, com etapas presenciais e online, que valorizam os saberes locais e as relações entre causas e efeitos.
- Instrumentos mistos, que combinam indicadores quantitativos com técnicas qualitativas (entrevistas, grupos focais, histórias de vida, observação participante).
- Sistemas de devolutiva pensados não como relatórios finais, mas como materiais vivos de aprendizagem para as organizações e seus stakeholders.
- Processos iterativos, que acompanham o ciclo do projeto e permitem ajustes de rota conforme os dados (e a realidade) evoluem.
Essas práticas, ancoradas em escuta ativa, empatia e consciência sistêmica, nos ajudam a criar avaliações que são, ao mesmo tempo, profundas e aplicáveis, técnicas e sensíveis, estruturadas e abertas ao novo.
Em direção a uma nova cultura de impacto
Acreditamos que o futuro da avaliação está na capacidade de integrar rigor e alma.
Não se trata de abandonar números, mas de complementá-los com aquilo que realmente nos move: relações, aprendizagens, transformação de paradigmas.
Projetos que se dizem regenerativos não podem medir seu impacto com lentes extrativistas.
Precisam avaliar com a mesma qualidade de presença, de escuta e de intenção com que atuam.
E isso é possível, cada vez mais organizações estão buscando modelos de avaliação coerentes com os futuros que desejam construir.
Na We.Flow, seguimos esse caminho com humildade, aprendendo com cada projeto, com cada território, com cada parceria.
Sabemos que avaliar não é tarefa fácil, mas é essencial.
Porque só reconhecendo o que estamos gerando, e como estamos fazendo isso, podemos seguir em direção a um impacto que não apenas transforma, mas também regenera.
A construção deste artigo baseou-se em conceitos e diretrizes de avaliação de impacto e desenvolvimento regenerativo presentes em:
- Sanford, C. (2017). The Regenerative Business. Nicholas Brealey Publishing.
- Wahl, D. C. (2016). Designing Regenerative Cultures. Triarchy Press.
- Bateson, N. (2017). Small Arcs of Larger Circles: Framing through other patterns. Triarchy Press.
- IDIS – Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social. (2023). Avaliação de Impacto: conceitos e métodos.
- Social Value UK (2022). SROI Guide.